“Aquelas coisas todas”: meu itinerário afetuoso pelas polaroides de Joyce
por Flávia Souza Lima, primavera/2020
Impossível, sob o meu olhar, não adotar um discurso (muito) pessoal ao falar do livro que Joyce Moreno, através da Numa Editora, nos oferece neste idiossincrático (e duro e pavoroso e revelador) ano de 2020. Menines, eu vi. E por isso, peço licença para esses dois dedos de pensamento.
Joyce, a morena, frequenta a minha rádio-cabeça bem antes de ser Moreno. Não exatamente pesa o que eu tenho a dizer sobre ela. Ou sobre ele, o livro. O objeto livro, tenho a impressão, alcança o seu sentido maior ao ser lido, e não redesenhado por outras palavras além das do autor. É, justa e talvez contraditoriamente, o que ele contém que nos faz transcender.
Ao que interessa: eis que o novo livro de Joyce Moreno chegou. Esquema dois em um, “lindo de morrer, lindo de viver” (obrigada, Rita Lee).
“Aquelas coisas todas – música encontros ideias” reúne seu primeiro livro, “Fotografei você na minha rolleiflex”, de 1997, em edição revista (um remix, como a autora prefere) e “Tudo é uma canção”, cujas crônicas inicialmente tinham o propósito de ampliar a obra de estreia e que, com o tempo, ganharam dimensão e vida próprias, tornando-se parte fundamental – e inédita – desse volume que reverbera a jornalista-cronista em quase 350 páginas de puro deleite.
A Joyce mais, digamos, popular, abrange a brilhante autora de canções, a violonista com digital ímpar reverenciada mundo afora, a voz reluzente com respiração ‘inimitável’, o pensamento afiado, a verve e mais um buquê de raridades – sonoras e não. O que talvez nem todos conheçam é que, com igual competência, ela é uma escritora de mão cheia. Ou seja, o que realmente importa aqui, nesse quase verão pandêmico, é acompanhar a narradora em primeira pessoa nadar de braçada nos casos pontuados por leveza e personalidade sem iguais.
“O que salva então é escrever distraidamente”, espelha Clarice Lispector em seu Água Viva. Pois bem. Joyce pesca o público e o entrega à entrelinha de cada história como se o fizesse de forma quase displicente. Só que não. Arguta, sensível observadora, ela envolve o leitor da primeira à última página num sopro. Relata, com (bom) humor e inteligência, vivências cariocas, discretos detalhes da vida privada, família, amores, viagens, cita um sem número de personagens e personalidades, enfim, um percurso ora panorâmico ora em big close pelos bastidores de sua trajetória artística dos anos 1960 até hoje. Seria árdua a tarefa de compor um índice onomástico para as Plêiades que cintilam no universo de Joyce. Vinicius e Tom? Estão lá. Chico e Caetano? Também. Bituca e os mineiros? Não podiam faltar, evidentemente. Nem Toquinho, Edu Lobo, Dori Caymmi. Elis Regina! Henri Salvador, Johnny Mandel, em suma, uma constelação…
Ao receber o livro: percebam, além do papel fosco da capa, agradável ao toque, o cheiro da tinta. E como ele confortavelmente se encaixa em uma das mãos – uma grande sacada, assim como a bela tipologia, o corpo escolhido, a impressão violeta. À primeira vista, nos detém a curva do violão, delineada como se também um recorte de litoral (aliás, ouçam “Litoral”, de Toninho Horta e Ronaldo Bastos, que ela gravou em seu antológico primeiro disco, de 1968). Em se tratando de Joyce, desconfio que esse litoral seja a orla da sua Copacabana querida, de onde vêm tantas das madeleines que oferta ao longo dos capítulos. A vida vem em ondas (e em canções), afinal. E essa aqui, ergueu-se no imenso e convidativo oceano de uma artista mais moderna (e ‘considerante’, completaria Vinicius de Moraes) a cada dia, personagem e testemunha, ela própria, das mais relevantes, ao lado (e dentro) da mais brilhante geração de músicos produzida no Brasil.
Não se trata apenas de um livro de memórias, embora elas sejam o fio condutor entre tantas – inimagináveis, alegres, intrigantes, carinhosas – histórias. Joyce costuma dizer que a MPB tem resposta pra tudo. Este livro é a sua.
Queridos leitores, caros ouvintes de música brasileira, o livro está à venda nas melhores casas do ramo, reais e virtuais. Façam-se o favor.
ps. Obrigadíssima, Joyce Moreno e Numa Editora pelo presente, que é de e para todes. A madrinha está feliz e orgulhosa.