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A feminina voz do cantor

Em novo CD e show, Zélia Duncan enlaça o seu cancioneiro afetivo de Milton Nascimento

Certas canções são como plumas: pairam, soltas e perenes, sem que nunca as percamos de vista. O cancioneiro de Milton  Nascimento que pousa em “Invento +”, nova viagem musical que liga Zélia Duncan a

Jaques Morelenbaum é assim, um punhado de plumas preciosas, criadas ou cantadas pelo Bituca nosso de cada dia.

“Invento +”, o show do disco lançado em novembro de 2017 pela gravadora Biscoito Fino, une dois instrumentos profundos, densos, leves, únicos: a voz de Zélia e o violoncelo de Morelenbaum que, na mesma embarcação, partem sozinhos de um cais particular para se lançarem na brilhante água das minas de Milton.

Arranjado de curvas e mistérios, o instrumento de Jaques é corpo sobre o qual o repertório é tecido sem avesso. A costura das cordas do instrumento com as da voz compõem um bordado repleto de itinerários emocionados que se vai revelando sob medida para vestir temas como “Ponta de areia”, “Mistérios”, “San Vicente”, “Travessia” e outros tantos que ardem em nós nas vozes de Elis Regina, Nana Caymmi, Simone, Mercedes Sosa além, evidentemente, de soarem majestosas quando interpretadas pelo próprio Milton. Zélia tem cuidado ao pisar em solo permeado de tantas inesquecíveis referências, vertendo sua potente voz em canto suave e afetuoso, como se imprimindo gentil reverência a esses ícones.

A inspeção na memória afetiva de cada artista foi o principal critério adotado para selecionar o repertório deste projeto: canções de amor, de fé, de esperança, de ser e de estar. O caminho da dupla se cruzou sobretudo na produção da década de 70, provavelmente a mais fértil da recente música popular brasileira e berço de praticamente todas as (lindas) canções deste recital.

A cumplicidade atávica com o Clube da Esquina e seu incrível bando de poetas e instrumentistas vai para o palco com os já inquestionáveis clássicos urdidos por Lô e Marcio Borges, Ronaldo Bastos, Fernando Brant, Toninho Horta, Tavinho Moura e outros que, se não participavam literalmente daquela exata esquina de Belo Horizonte, flertavam com ela, caso de Joyce. O espírito comunitário e a sonoridade relativamente experimental da época são aqui desconstruídos e redesenhados pela cuidadosa caligrafia de dueto entre canto e cello.

“Tudo o que você podia ser” (Lô e Marcio Borges), “San Vicente” (Milton e Fernando Brant), “Cais”, “Nada será como antes” e “Cravo e canela” (todas de Milton e Ronaldo Bastos) aparecem no (como se esquivar do lugar-comum?) antológico álbum “Clube da Esquina”, de 1972. Três pilares fundamentais da obra do “mineiro” nascido no Rio de Janeiro emergiram justamente em “Minas”, de 1975, seguidos de mais três trazidos em “Geraes”, lançado no ano seguinte. São eles, respectivamente: “Beijo partido” (um Toninho Horta que contrasta e aproxima uma embargada Nana Caymmi de uma enternecida Zélia), “Fé cega, faca amolada” (Milton e Ronaldo Bastos), “Ponta de Areia” (Milton e Fernando Brant); e “Cálix Bento” (Tavinho Moura), “Volver a los 17” (Violeta Parra), hino na voz de Mercedes Sosa, como também “O que será (À flor da pele)”, primoroso tema que Chico Buarque compôs para a trilha do filme “Dona Flor e seus dois maridos”, lançado naquele mesmo ano.

Elis, essa mulher, escolheu “Caxangá”, de Milton e Brant para abrir o seu “Elis”, de 1977. No ano seguinte, ela dividiu com Milton os vocais da emblemática “O que foi feito devera” em “Clube da Esquina n 2”, álbum não menos antológico que o seu antecessor de 1972. Desse mesmo disco foram colhidas “Canção amiga” (versos de Carlos Drummond de Andrade musicados por Milton) e “Mistérios”, gema de Joyce e Maurício Maestro que soa singela, doce e transparente como água de rio manso. Fernando Brant, o guardião das melodias mais preciosas de Milton, assina ainda “Canção da América” e “Encontros e despedidas”, ambas de Sentinela (1980), que também empresta “Peixinhos do mar”, de Tavinho Moura.

“Ivento +” percorre essa evocação da montanha chamada Milton Nascimento, prolongando-o através da reluzente face de Zélia Duncan que, ao anunciar que se transforma em outras, revela-se, mais e mais, a si própria. Em tempos tão sombrios, nos dá esse presente ao lado de Jaques Morelenbaum: os miltons que cultivamos no coração e que há várias gerações seguimos cantando com a alma impregnada de sentimento.
Salve, Zélia, salve, Jaques, por nos agasalharem nesse preciso caleidoscópio de mil tons. Onde — alguém há de dizer — poderia haver abismo, eu digo: há nascimento.

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