Com sorte e vacina, pode ser que em dezembro de 2021 nos demos conta de termos vivido o primeiro ano do resto de nossas vidas. Ultrapassaremos 2020, quem sabe de vez, mas ainda com a vívida imagem desse ano disruptivo em que todos se soltaram as mãos e, sincronicamente, não se soltaram, unidos virtualmente por gestos de afeto, como jamais vistos. O ano em que nos vimos sumir por aí, sem vitrines nos vendo passar. O ano em que sentimos saudade de rever amigos ao vivo e a cor, sem ser pela tela do computador. O ano do ninguém na rua. O ano das janelas e das panelas. O ano que faltou.
Que fique gravado para sempre: foi a arte, esse incompreendido desobjeto, esse modo de vida provedor de asas, um elemento fundamental para a sanidade dos que estavam (estão) em casa. Aqui, em especial, falarei da música (presente em mim) e de sua capacidade demiúrgica, que nos embala, eleva e absolve desde sempre.
“Farol na cerração dos grandes medos”
Teresa Cristina recebeu recorrentemente o título de Rainha das Lives — que, ouso dizer, não lhe faz juz, ainda que tenha sido (e seja) ela, a soberana das noites pandêmicas. TT (ah, a intimidade…) é inclassificável. Hors-concours. A cantora e compositora mostrou-se curandeira, cirurgiã de almas, tábua de salvação, deusa, orixá, força da natureza, travesseiro, elo, elã. Um portal para aquele lugar onde a dor não tem razão, mesmo quando a fratura é exposta. Ela assumiu o protagonismo em uma coleção de noites memoráveis que revelaram o que de mais humano a habita, em muitas de suas potencialidades – generosa, perspicaz, clara, engraçada, triste, firme, irônica, emocionada, coloquial, aguda, exaltada, solidária, reverente, atenta – para citar umas poucas. Conseguiu mostrar com frescor e, eu diria até, com humildade, a profunda e inadiável conhecedora da música do Brasil e da história de seus compositores. À bordo de um perfil de rede social e de muita intuição, levou um país para dentro de sua casa e salvou vidas aos milhares. A minha, salvou centenas de vezes. Teresa Cristina é o buquê de Brasil onde quero morar.
“Ou mansa como o último carinho quando já chega a manhã”
A voz de Mônica Salmaso, a paulistana sabiá, é lugar onde mora a beleza intraduzível. Ela também foi das que fizeram do amor pela música um ato de resistência. Tanta hospitalidade para a música se desdobra em – ótima – anfitriã. Desde março ela vem escrevendo afetuosamente uma já antológica coleção de canções ao lado de incontáveis convidados, amigos, instrumentistas e cantores, na série “Ô de Casas”, que atualmente oferta 130 transcendentes vídeos oferecidos em suas redes sociais. Diante da sua voz é “capaz que a dor debele”. Assim seja.
“Certas canções me chegam como se fosse o amor”
As lives fizeram a Cigarra voltar ao violão e reacender canções que o tempo havia esmaecido. Linda, leve e solta, fez 35 arrebatadoras aparições. Caetano fez duas; na segunda, eu transbordei no primeiro minuto. A de Gal foi tensa e ainda assim ela brilhou. Alceu, mágico, cantou com a linda Orquestra de Ouro Preto. Paulinho esbanjou tudo de melhor. Adriana que, como tenho dito, não tem ninguém ao lado, gravou novo álbum, fez um clipão com todas as novas canções e foi para o palco com entradas e bandeiras, sem público. Cada live dessas, aliás, merece um filme-disco-livro. Falando em livro, já leram “Aquelas coisas todas – música encontros ideias”, o novo e e imperdível livro de Joyce Moreno?
“O que temos são janelas”
Hoje apagamos as luzes de um ano que trafegou na escuridão, embora aceso por tantas inspiradoras e necessárias lives. Sinto em cada 31 de dezembro um dia de limbo. Nem cá nem lá, nem um nem outro, meio barro meio tijolo. Um pórtico atravessado por promessas, agradecimentos, tristezas, alegrias, esperanças, fogos, ondas, uvas e romãs.
O ano novo perfeito? O poeta já deu a receita, mas desconfio, lá no fundo: não há receita. Há desejo, sempre, que seja bonito. Que seja o próximo, o melhor ano da nossa vida, pois, creiamos, vai ser o ano em que ela nos será devolvida.
Não importa sob que condição, que seja 2021 um pouco do que cada garrafa traz quase secretamente: uma ducha boa debaixo da rolha. Abundante de energia positiva, pulsante de amor no coração e de fé na vida. Meu melhor desejo é que as muitas rolhas, ao explodirem na noite do 31, espoquem também a capacidade de se poder se esperançar a cada dia. A vacina vem aí. Saúde!
“Mais que nunca é preciso cantar, é preciso cantar e alegrar a cidade”. Sigamos a marcha. Estamos vivos, afinal.
[*Pelas aspas e versos sugeridos ao longo dessas improvisadamente traçadas, agradeço a Chico Buarque, Joyce Moreno, Sueli Costa, Abel Silva, Vinicius de Moraes, Carlos Lyra, Paulinho da Viola, Guinga, Paulo César Pinheiro, Milton Nascimento, Tunai, Paulinho da Viola, Adriana Calcanhotto.]
Por último e não menos importante: a Ziriguidum fez 18 edições do festival #ZiriguidumEmCasa, acendendo a música da cena independente. Gente é pra brilhar, afinal. Procure saber.
“A experiência de produzir um festival online, de lives, foi incrível desde o início. Em um primeiro momento o caos. Todos trancados em casa sem saber o que fazer, Claudio Lins me liga com a ideia de juntar as pessoas. Tinha acabado de ver um festival que estava se organizando em Portugal e propus uma ideia aparentemente simples: vamos fazer uma grade de quatro ou cinco artistas por dia e juntar essas lives em um festival no sábado e no domingo. A adesão, a vontade de participar, a urgência do momento, foi tão grande que aquilo virou uma grade de quinta a domingo com dez shows por dia. Ninguém sabia bem o que estava fazendo – assim como ninguém sabia muito bem o que estava vivendo – mas a experiência foi emocionante para todo mundo: para os artistas e para os que estavam em casa trancados. Sem saber meio o que fazer, continuamos. Logo nossa equipe cresceu com a chegada de Maria Braga e Ana Paula Romeiro e seguimos fazendo nossas grades a princípio semanais e depois quinzenais. Esse formato muito simples foi muito importante em vários aspectos. Fez bem ao artista, fez muito bem ao público. A música foi – muitas vezes – a única companheira de pessoas que se viram presas em casa por meses a fio. Assistimos nossos nomes favoritos, reencontramos outros que estávamos com saudades e – muito importante – descobrimos novos talentos que já estavam aí.
Com a chegada de patrocinadores, agências especializadas… as livres cresceram e foram ficando mais profissionais – mas muitas vezes sem nem chegar perto da emoção daquele esquema “um banquinho, um violão e um celular” do início. Acontece que a dinâmica mudou. E nós também acompanhamos. Resolvemos fazer um evento mensal, temático, e mais concentrado. Particularmente esse é o formato que mais gosto hoje em dia. Em duas horas você pode ver um desfile incrível que junta artistas de várias partes do mundo, de vários tipos, de expressões diferentes, de turmas diferentes. E como é rica a música brasileira. E como ela está viva, pulsante, criativa e plural.
A coisa que mais gosto na minha vida é mostrar isso. Dedico minha vida a provar isso. A arte está mais viva do que nunca.
As lives vão continuar. Mesmo quando todo esse pesadelo (no caso do Brasil, pesadelos) acabar, a internet já é uma nova janela. A tecnologia já existia há muitos anos, mas o costume do público de parar para assistir a um show pela internet é coisa nova. E que cresça. E que fique. A gente vai continuar aqui, experimentando, criando e mostrando para quem quiser ver!”
Beto Feitosa