Artista reúne paisagens marítimas em turnê de tons brandos
A onda que se ergueu no mar de Adriana Calcanhotto foi bater no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, para estrear o show “Margem”, neste (desgostoso) agosto de 2019.
Hasteado sobre o repertório de seu mais recente CD, vértice final da trilogia marinha que espelha e espalha a sua paixão pelo mar — que brotou em Maritmo (2008) e seguiu com Maré (2018), também essenciais no show —, a artista se desveste da intensidade da cor do pau-brasil que envolvia seu vigoroso trabalho anterior e se reveste de marinha. O mar, lugar de passagem e destino, serenou para Adriana, cuja personalidade artística de navegação e linguagem inesgotáveis.
Faz tempo que Calcanhotto, esta calipso pós-moderna, tem a mão firme no leme de sua trajetória, uma embarcação que navega solta e baldeia em achados poéticos, provocações sonoras, caminhos cruzados, mosaicos de sentimentos, referências artísticas. Tantos recortes percorrem a costa desse show, que ela dirigiu e apresenta ao lado dos músicos Bem Gil (guitarra), Bruno di Lulo (baixo elétrico) e do vibrante Rafael Rocha (bateria, MPC), com rápidas aparições a bordo de sua própria guitarra. O tema oceânico se desdobra também no envolvente figurino da artista, com explícita referência às redes de pesca e seus suaves balanços quando lançadas ao mar.
Nessa nova e fluente travessia, Adriana é sereia, ser de canto suave e leve sofisticação gestual que faz das águas seu caminho mais consentido. Tantas são as rotas sonoras oferecidas que, talvez, só mesmo os escafandristas imaginados por Chico Buarque em “Futuros amantes”, novidade na voz da cantora e, de certa forma, pela poesia de Antonio Cícero em “Os ilhéus” (com Wisnik), possam resgatar daqui a algum futuro os luminosos vestígios presentes nesse baú, submerso nas águas do Posto 9 (com “Maritmo”) ou da Bahia de Caymmi (“Quem vem pra beira do mar”), ambas pescadas de “Maritmo”. Álbum que também reserva um dos hinos do cancioneiro de Adriana, “Vambora”, a canção de amor inscrita com os mais preciosos versos da compositora (“que o que você demora é o que o tempo leva”) além de “Mais feliz” (Cazuza, Dé, Bebel Gilberto), cantada que interpreta desde sempre como se dela.
De “Maré”, o segundo porto de sua discográfica cartografia atlântica, vieram a senha do show: “mais uma vez vejo o mar voltar como imagem” – revelada na canção de mesmo título composta com Moreno Veloso -, e a suingante “Porto Alegre (nos braços de Calipso)”, escrita por Péricles Cavalcanti que ela traz em canto tatuado de verão.
É também de Péricles o surfista distraído que figura em “Príncipe das marés”, tema fisgado de “Margem”, o álbum que confessa cores de tardes inteiras, assopradas para o show na inspirada iluminação cênica. De amor ao relento, como em “Era pra ser”; de crepúsculos fúcsia, como em “Tua”, à declarada entrega em “Margem” (“querendo teu beijo, querendo teu beijo”), Adriana Calcanhotto define que o sentimento é (i)matéria tão mutável quanto o oceano.
Atenta, é com “Ogunté” que chama atenção para a crescente poluição dos ocenos, bem como para a urgente questão da floresta brasileira. “Salvemos a Amazônia!”, conclama a artista em momento dos mais efusivos da noite. “Lá Lá Lá” chega com a batida de palmas da banda e sua inadiável sensação dançante, reencontrada nos 150 bpm de “Meu bonde”, funk marcado na batida do agogô.
Dois registros do álbum “Público” (2000) também embarcaram no roteiro com a devida apropriação da intérprete: “Devolva-me” (Renato Barros e Lilian Knapp) e “Maresia” (Paulo Machado e Antonio Cicero).
Adriana Calcanhotto desliza mansa e precisa na superfície marinha. Vagas que formam a grande onda de uma imensa artista. Em Kanagawa, Coimbra ou no Rio, Adriana segue tão impermanente quanto o mar, tão indomável quanto a sinuosidade das águas na pintura de Hokusai.
Finda, a viagem não finda.