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Caixa mostra páginas censuradas da história do MPB4

A trajetória do MPB4 se confunde com a briga pela democracia no Brasil. Cinco capítulos importantes dessa história ganham documento inédito e importantíssimo. O selo Discobertas coloca no mercado a caixa “Barra pesada – Ao vivo nos anos 70” com CDs que trazem shows importantes que sofreram com a tesoura da ditadura entre 1973 e 1976.

Nenhum governo autoritário suporta manifestações culturais. Artistas costumam ser desqualificados e perseguidos. A década de 1970 foi especialmente cruel no Brasil e o MPB4 enfrentou problemas assim como os outros artistas que usavam sua voz para denunciar o que estava acontecendo no país. A caixa traz gravações que estavam guardadas pelos integrantes do grupo vocal, na época ainda com sua formação original trazendo Miltinho, Aquiles, Magro e Ruy. Felizmente o material preservado tem ótima qualidade de som, e valor histórico inestimável.

O primeiro CD traz na íntegra o show “República do Peru” com roteiro feito pelo grupo em parceria com Chico Buarque e Antonio Pedro – também diretor do espetáculo. No livro “Vozes do Magro”, que conta a história do grupo, o show é definido como “nossa primeira peça musical, nosso primeiro ‘besteirol’, cheio de denúncias nas linhas e entrelinhas”. Foram apenas sete apresentações no Teatro Fonte da Saudade (zona sul carioca) antes que a censura proibisse a continuação da temporada – que inicialmente previa um mês. O show foi definitivamente proibido, mesmo com tentativas do grupo em modificar o roteiro.

“Você corta um verso, eu escrevo outro”, como diz a música “Pesadelo”, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, incluída no roteiro. “De repente olha eu de novo / Perturbando a paz, exigindo o troco”, diz a mesma música. No ano seguinte o grupo voltava com o show modificado, agora sem textos e incluindo músicas do álbum recém-lançado, “Palhaços e reis”. Rebatizado como “Rua República do Peru” (então endereço do grupo em Copacabana), ficou em cartaz no Teatro da Galeria de junho até novembro de 1974.

O terceiro CD da caixa traz o show “República de Ugunga”, de 1975. Novamente no Teatro Fonte da Saudade, o show ficou em cartaz fazendo enorme sucesso durante cinco meses. Para continuar a temporada em outros espaços o grupo teve que voltar a se submeter aos censores que dessa vez proibiram o espetáculo. A solução foi reduzir drasticamente o roteiro, retirar as falas e rebatizar como “Recital”. Ao contrário do roteiro anterior, agora os textos apresentavam formalmente as músicas, mas fazendo citações instrumentais que remetem aos versos de “Passaredo”: “O homem vem aí”. O disco mantém um manifesto contra a censura de um espetáculo teatral em São Paulo.

Mais uma modificação e nasceu o espetáculo “Safari”, que contava a história de um grupo vocal que recebia uma oferta irrecusável para fazer carreira em uma república distante. No livro Magro lembra o novo roteiro: “E lá fomos para ficarmos confinados em um quarto de hotel enquanto ensaiávamos para as  apresentações que nunca aconteciam. Para piorar, estávamos sendo misteriosamente vigiados pelas autoridades locais que mandavam avisos ameaçadores a cada vez que comentávamos negativamente sobre o país”.

Além da história de resistência, o repertório dos cinco shows é primoroso trazendo desde contemporâneos Chico Buarque (então quase um quinto elemento do grupo, sempre juntos no palco e em discos), Edu Lobo, Giberto Gil, Gonzaguinha, Sidney Miller e Milton Nascimento, até Villa-Lobos e Noel Rosa. Seguindo o espírito de lutar pela democracia o MPB4 vem apresentando desde 2017 o show “Você corta um verso eu escrevo outro” com músicas e histórias dessa época que não devem ser esquecidas.

A caixa é um retrato fiel de uma época de truculência. Com humor e arte o MPB4 denuncia nesses discos página infeliz de nossa história. Para se emocionar, festejar as conquistas da democracia e garantir que a censura nunca mais tenha vez.

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2 thoughts on “Caixa mostra páginas censuradas da história do MPB4

  1. Aquiles Rique Reis disse:

    Muito bom o texto do Beto Feitosa. Em poucos parágrafos ele identificou o sentimento de angústia
    e medo, e principalmente a disposição que tínhamos de não calar a voz do MPB4.

    1. Beto Feitosa disse:

      Que honra, Aquiles! Obrigado!

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