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Música em estado de pandemia

“Só”: em novo álbum, Adriana Calcanhotto assina nove canções inéditas criadas durante a quarentena

 

Há os que vociferam diante da câmera, há as madrugadas impreteríveis de Teresa Cristina, há as aparições descartáveis. Há os encontros virtuais de Mônica Salmaso, há a maciez da voz de Rosa Passos. Há as aparições dominicais da Cigarra e as desejadas, bissextas, de Joyce Moreno. E há, dentre tanta gente, as que colecionam novas canções.

O estado de pandemia decretou há incontáveis semanas (e quantas mais?) emergências várias, díspares, particulares, singulares, conjugadas quase sempre entre verbos (e versos) de solidão. Neste outono em que o Rio de Janeiro está sob o céu mais azul do ano, o confinamento se tornou, para Adriana Calcanhotto, o seu próprio motor da luz. Em casa, compôs sozinha música e letra das nove canções que reuniu no álbum “Só”, o seu décimo-terceiro (sem contar os três que assina como Adriana Partimpim), 30 anos após estrear com “Enguiço”.

Adriana Calcanhotto costuma reverberar uma explosão de linguagens atávicas à sua arte e utiliza o relevo de sua música como artéria que conecta essas vozes que jamais a deixam só. Talvez ricocheteie daí o Haroldo de Campos de “Entremilênios”, que ela resgata (não apenas) como mote de abertura do plano-sequência do vídeo-clipe de quase 30 minutos no qual interpreta as canções do álbum: “a musa não se medusa: contra o caos faz música”.

Ela segue o poeta e, em período de involuntário recolhimento, faz música. “Só” traz Adriana sozinha, mas não desacompanhada. Remotamente, sob bonito e instigante comando musical de Arthur Nogueira, compositor paraense, o processo inclui a participação de vários músicos, ricas tessituras e a costumeira profusão de ritmos e intenções sonoras habitualmente muito bem arquitetados nos trabalhos da compositora.

Sobre o que se fazer na quarentena (além de um disco — com ficha técnica! – e um enorme vídeo-clipe com todas as canções desse disco), Calcanhotto incorpora o vocabulário do funk carioca e larga o conselho inteligente em “Bunda lê lê”: “senta a bunda e estuda / senta a bunda e lê / senta a bunda e vai à luta”, na mais provocante das faixas do trabalho. A batida funkeada, aliás, permeia o álbum ao costurar dos primeiros momentos, com “Ninguém na rua”, ao final da audição, onde o ritmo encontra ecos portugueses na atiçante “Corre o munda”.

Se o ambiente de “O micróbio do samba” ecoa na farra de “Eu vi você sambar” e no toque politizado de “Sol quadrado”, “Tive notícias suas” puxa o fio melancólico do novelo de “Era pra ser”, bela canção de (des)amor presente no álbum anterior, “Margem”. O coração em quarentena da compositora balança também em “Era só” – que faz par romântico com “Tua”, também registrada em “Margem”. Adriana conversa consigo própria, indo adiante.

As obras reunidas em “Só” trazem a digital indissociável do profuso mosaico criativo da artista, cujo não-pertencimento a uma específica prateleira no universo da música brasileira se faz mais evidente a cada safra de canções que oferece. Compositora com eira e com beira, Adriana se debruça sobre a realidade monástica dos tempos de quarentena e reflete as percepções infiltradas através dessa paisagem.

Adriana Calcanhotto não tem ninguém ao lado. “O que temos são janelas”, diz ela. Que avistam muito além, faz tempo.

 

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