O coco de Caetano Veloso é colorido, criativo, pulsante. Eterno menino tropicalista não se aquietou com a pandemia e produziu um novo e vigoroso álbum: “Meu coco”, todo em primeira pessoa, apenas composições dele sem parceiros. Nove anos depois de seu último disco de inéditas, o novo trabalho abre o coco do artista, exercita a língua e manda abraçaços para o Brasil de 2021.
“João Gilberto falou / E no meu coco ficou / Quem é, quem és e quem sou?”. Essa questão norteia o álbum que fala sobre Brasil, sobre Brasis, gerações e tradições. Entre o acalanto e o desconforto; tudo que vem de sua obra desde sempre e está claro nesse álbum miscigenado e guerreiro em tempos de intolerância. Caetano ainda está caminhando contra o vento, contra o autoritarismo burro que quer calar, achatar, apagar. A arte salva, sempre. E viva o país plural.
O coco tropicalista de Caetano junta tribos e gerações sem preconceitos em um disco repleto de citações diversificadas. Se na faixa-título garante que “Com Naras, Bethânias e Elis / Faremos mundo feliz”, em “Sem samba não dá” cita a nova geração popular em nomes como Ferrugem, Glória Groove, Maiara e Maraísa, Anavitória, Marília (a quem chama de “Mar(av)ília “) Mendonça entre outros. Ao som dos tambores do candomblé celebra em “GilGal” – dividindo vocais com Dora Morelenbaum: “Vem de Pixinguinha a Jorge Bem / Pousa em Djavans / Nossas almas irmãs / Rasgaram manhãs / Mas sem chegar aos pés dos Tincoãs”.
O disco puxa um resgate da autoestima do país com a alma machucada. O sonho do futuro fica na projeção de “Enzo-Gabriel”, buscando a luz pelas novas gerações: “Qual será teu papel na salvação do mundo? / Olha para o céu / Não faça só como eu / E o meu coração vagabundo”, aconselha. A semente também aparece em “Autoacalanto”, feito para seu neto Benjamin, “que é, por enquanto, caçula de mim”.
Mas Caetano sabe que não dá para esperar as crianças para uma mudança e também mostra a sua insatisfação e inquietude. Tropicalista não se acomoda jamais. E manda recados para o Brasil 2021: “Não vou deixar / Não vou, não vou deixar você esculachar / Com a nossa história / É muito amor, é muita luta / É muito gozo, é muita dor / E muita glória”, dispara para remetentes certeiros – no plural.
Conexões com o Brasil, com o mundo. A cantora portuguesa Carminho aparece dividindo com Caetano os vocais do fado “Você-você”, acompanhados pelo brilhante bandolim de Hamilton de Holanda emulando uma guitarra portuguesa. Com sotaque lusitano canta “Eu cá nesta Americáfrica / Vivo entre miséria e mágica”. A África-mãe também está em “Pardo”, com arranjos de metais do maestro Letieres Leite, que faleceu na semana de lançamento do álbum. “Conversar com ele era ganhar uma aula sobre claves rítmicas e gostos harmônicos”, lamentou Caetano em sua conta no Instagram.
Caetano conhece os Brasis, fala sobre eles com intimidade do olhar sempre curioso e crítico. Viajando fundo em um trem de cores (e nomes) verdadeiramente patriotas, Caetano sabe, Caetano tem razão: Sem samba não dá.