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Sempre a primeira vez

A voz e os instrumentos de Adriana Calcanhotto voltam ao palco em show inédito (com plateia!)

 

“Margem” e “Um show Só”, aparições imediatamente anteriores a esta de agora espelham, através de uma mesma – e jamais a mesma – Adriana Calcanhotto, o (a)braço do tempo. O mar e a cidade, o confinamento, o país, a volta aos palcos são mote e glosa desses três espetáculos que nascem em momentos profundamente distintos – do mundo e, portanto, dela própria –  mostrando-se essencialmente complementares.

 

Percebam: a Ogunté de “Margem” lança sobre as águas as redes de pesca contíguas ao seu vestido; além de poesia, matéria para tecer canções, recolhe das águas muitas e muitas e muitas garrafas plásticas, com as quais, brilhantemente (com trocadilho), foram urdidas as esculturas flutuantes de seu cenário atual (por Mana Bernardes). Num permanente diálogo com a sua própria trajetória, espécie de balanço contínuo de ondas que a levam adiante, o itinerário de Adriana baldeia antes por “Só”, o álbum gravado em casa e o show sem plateia, no ano de 2020, diante do mar revolto das incertezas trazidas pela pandemia. Essa produção cristaliza desde já contornos significantes na história recente da compositora e que vieram à tona, diante do público, nesta breve temporada de quatro shows realizados no Rio de Janeiro neste ainda sofridamente pandêmico agosto de 2021.

 

Calcanhotto tramou o repertório deste inédito show solo, com violão e guitarras, dando voz a um buquê em que oferta diferentes fases de seu caminho musical. Já clássicas de seu inventário autoral, há canções fisgadas dos anos 1990 como “Esquadros”, “Senhas”, “Cariocas” e dos anos 2000, como “Vambora” e “Cantada (Depois de ter você)”. Apresentadas ao lado de canções de outros autores que ela tomou para si, como “Três”, de Marina Lima e Antonio Cícero, poeta que também assina “Maresia” (com Paulo Machado) e, de Caetano Veloso, “O nome da cidade”, pungente canção-fotografia que emoldura o Rio de Janeiro. “Seu Pensamento” (melodia de Dé Palmeira com letra de Adriana) e “Inverno” traz, uma vez mais, a palavra de Cícero ao roteiro do show.

 

Como arquiteta de canções, a compositora segue estruturando obras com achados poéticos que permanecerão para além de sua história, a exemplo de “A flor encarnada”, recentemente gravada por Maria Bethânia no álbum “Noturno”, de 2021, em que estampa o admirável verso “restei o que sobreviveu”. Nesse mesmo trabalho, Bethânia também registrou o áspero e emocionante relato “2 de junho”, dificílima canção que versa sobre o vôo fatal do menino Miguel, no Recife, que Adriana havia apresentado no único show que realizou com as canções de “Só”, em 2020, e trouxe também para esse, em momento denso da noite. A cantora baiana, aliás, foi quem deu o mote para a instigante canção “Veneno bom”, ao despretensiosamente lançar a expressão em resposta a um e-mail de Adriana, que antes lhe enviara “Tive notícias”, sutil canção de amor da safra pandêmica, que por sua vez conversa intimamente com o desencontro amoroso de “Era pra ser”, trazida do recente “Margem”. “Vidas inteiras”, pungente canção de aparição bissexta, composta nos anos 2000 para a trilha do filme “Polaroides Urbanas”, também folheia a indefinição sentimental e se acomoda harmonicamente no roteiro, sendo mais uma gema do inesgotável cancioneiro de Adriana Calcanhotto (faz tempo tempo tempo que desejei esse momento).

 

Tantos atravessamentos deságuam em “Tudo igual”, número final do show e espécie de celebração da volta aos palcos. Em sua essencialidade, uma vez mais, Adriana Calcanhotto, voz e violão nus, mostra-se grandiosa.

 

Sopro de vida. Clarão. Porque, fora isso, não ficaria nem bem alguém dizer que foi ao teatro todos os dias da temporada. Mas fui pra ver.

 

[Redigo: Adriana não tem ninguém ao lado. Ser público de novo – nesse turbulento momento – teve um indescritível encanto, soou como uma primeira vez, a exemplo da estreante canção.]

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