Artista chega a “Margem”, o terceiro elemento de sua trilogia marinha, 21 anos depois de “Marítmo” e 11 anos após “Maré”
A mulher do pau-brasil agora é Ogunté. Sem dar descanso à mulher do pau-brasil e a outras tantas antes nela, já que Adriana Calcanhotto sempre foi miríade.
Capacidade rara dessa Iemanjá gaúcha, a de pulsar com muita naturalidade funk e canção de amor. Balada radiofônica e poesia antropofágica. Dores e cores. Ritmo e silêncio. A mais cirúrgica poeta de sua geração, Calcanhotto extravasa inquietudes pessoais e ousadias sensoriais, plásticas e auditivas neste seu décimo-quinto álbum. Bagunça limites. Indetermina prateleiras. Zanza, na vida e na arte, pelo que deseja. O que deságua nas nove faixas de “Margem” vem do patchwork que Adriana não apenas compõe mas é.
“Margem”, que aporta nas plataformas digitais, teve longuíssima gestação ao longo desta última década. E veio chegando aos poucos, com três singles lançados ao mar a partir de fevereiro, em clipes causadores. A primeira onda trouxe “Ogunté”, seixo que a um só tempo reflete o fascinante e misterioso mundo de Odoyá — que hoje mora num mar de embalagens plásticas descartadas nas águas correntes do planeta– em ousada sonoridade de provocações digitalmente baianas. Esse mesmo inóspito ambiente estampa a capa do disco: nela, Adriana se banha em lixo plástico, denunciando a degradação dos ambientes aquáticos em bela sacada supra-realista. “Margem” a canção-título, uma espécie de bossa nova reconstituída, traz nova viagem da artista, que raspou a cabeça diante das câmeras: do que se despe, veste-se.
A terceira vaga trouxe “Lá lá lá”, onda azul – caribenha? nortista? baiana? – aglutinadora de sensações dançantes como todo bom samba de roda, impresso em vídeo que a expõe tingindo de azul um ambiente e a si própria. Entregar-se é também se divertir, como Adriana costuma esboçar na maré de seu vai e vem criativo.
“Margem” arrebenta também em “Dessa vez”, o quarto clipe do trabalho, sonora onda que tem a inconfundível marca da compositora, esse Roberto Carlos pós-moderno (sim, essa im/expressão é um elogio que nada tem de sexista).
O oceano de Adriana traz azuis profundos. Nele, cabem também a amorosidade de “Tua”, derramada canção que Maria Bethânia gravou elegantissimamente em disco homônimo há 10 anos e que aqui a compositora reveste de contemporaneidade. “Era pra ser”, registrada igualmente pela intérprete baiana para uma trilha de novela em 2016, suspira e cresce em bonita melancolia impressa pela voz da autora, cultivada pelo toque da guitarra portuguesa, ao cerzer o romântico ambiente da canção.
O bordado praieiro recolhe poetas com escalação constante em sua obra. Péricles Cavalcanti está presente com “O príncipe das marés” – que poderia estar belamente encaixado também em discos de Partimpim. Do parceiro Antonio Cícero ela puxou “Os ilhéus”, que recebeu delicado véu melódico de José Miguel Wisnik.
Faz tempo que Adriana Calcanhotto veio para a beira do mar. É esse indissociável ambiente aquático o espelho de seu ritmo, sua onda, seus olhos de ressaca. E de sua capacidade de balançar, como no funk “O bonde”. Caminhar na orla de Adriana é se deixar levar por suas múltiplas correntezas.
Mão no leme, ao lado de Adriana, músicos essenciais à sonoridade do álbum: Bem Gil (violão e guitarra), Bruno di Lullo (baixo e synth) e Rafael Rocha (bateria e percussão).
“Margem” não é disco que se ouve pelas bordas. Embarquem nesta nave marinha. E mergulhem fundo.
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